domingo, 25 de março de 2012

A última flor

O outono acabara de chegar, e mais uma vez não trouxera a paz. Algo o incomodava, ainda que não soubesse exatamente o que seria. Precisava encontrar um culpado. Com seus vinte e poucos anos pensou que talvez fosse a hora de deixar o seu jardim de lado: concluiu que aquilo só lhe trazia angústia e sofrimento. Às vezes, é bem verdade, trazia-lhe dozes de alegria e uma felicidade momentânea. O simples fato de ficar ali, cultivando-as, esperando por dias melhores, alimentando esperanças, ansiando o tempo passar.

Começou a cultivar o seu jardim por volta dos sete anos, logo quando se pôs a frequentar a escola. Na verdade mal sabia o que fazia. Com uma ingenuidade e pureza de alma que só uma criança poderia ter, apaixonou-se por uma Margarida. Em meio a tantas Margaridas, uma lhe era especial e fazia o seu coração bater mais forte. Por não entender, sentiu vergonha daquilo. Confuso, repulsava aquele amor inocente e singelo.

As Margaridas, porém, são sensíveis. Ora, pois, não sobrevivem por muito tempo, e no início do ano seguinte aquela flor especial seria substituída por outra Margarida, e assim seria no ano seguinte, e no próximo e assim enquanto a sua inocência o permitisse.

Até que um dia, já no início da adolescência, com os hormônios à flor da pele, se cansou das Margaridas e resolveu cultivar uma Rosa. Desde o início cuidava dela com muito carinho, até que finalmente florescera: vermelha, vistosa, cativante, apaixonante. Flor mais bela não lhe havia. Cego, não tinha olhos para mais nenhuma criatura: acabou por abandonar as outras flores, deixando que a Rosa, a egoísta Rosa, reinasse soberana em seu jardim.

Jamais sentiu nada igual. Tinha ciúmes até do ar que a Rosa respirava, mas não tinha coragem de declarar a sua paixão. Sofria. A Rosa, boba que não era, sabia daquele amor doentio e fervoroso. Por vezes virava-lhe a cara e o maltratava com seus espinhos. E, com a maldade que só cabe às rosas, alimentava aquele amor, seduzindo-o dia após dia, mesmo sabendo que jamais o corresponderia.

Quando chegou o dia em que mudou de colégio começou a despertar. O ambiente novo o fez pensar no seu jardim e perceber o quanto a Rosa e seus espinhos o fizeram mal. Percebeu que ela já não era tão vistosa e que não merecia sua atenção. Deixou de cuidar daquela Rosa e, quando ela já estava por morrer, decidiu arrancá-la de uma vez da sua vida.

Olhou em volta e se deu conta de que o jardim estava vazio. Sentiu uma mistura de alívio e liberdade. Naquele momento apenas desejou nunca mais passar por aquilo novamente. Daquele mal estava vacinado, e prometeu para si mesmo que flor com espinhos não cresceria mais em seu jardim. E talvez flor nenhuma. Percebeu que deixar o jardim vazio poderia não ser tão ruim, e talvez fosse mesmo a decisão mais inteligente para quem não quisesse sofrer.

Assim o fez, por três longos anos, até que chegou o dia em que teria de mudar de vida mais uma vez. Com tantas mudanças, nem se dava conta que seu jardim, aos poucos, ia florindo novamente.

Quando percebeu já estava lá, a cultivar violetas, petúnias, cravos e tulipas. Dessa vez, nenhuma chamava a sua atenção de forma especial: cuidava de todas com o mesmo carinho. Ainda tinha medo de espinhos, e por isso foi incapaz de perceber a Azaléia que brotava no canto e floria cada vez mais bela com o passar dos dias. Com a ingenuidade juvenil e a pureza da alma que lhe pertencem, a Azaléia se encantava pelo Jardineiro. Um amor que passou despercebido e abafado pelo medo de espinhos passados.

A lei daquele canteiro era não se envolver. E o fazia bem. Porém, por mais que resistisse, chegou o dia em que o Jardineiro cedeu e finalmente se envolveu com as Orquídeas. Ficou encantado diante de tanta beleza e sensualidade, mas se incomodava com o seu ar superior e por isso sempre acabava arrancando todas do seu jardim.

Não demorou muito, descobriu que certa Tulipa lhe chamava atenção. Cativante, miudinha, charmosa que só ela. Partiu seu coração. Porém agora estava mais maduro e controlou seus sentimentos, sabia que não era a hora. Alimentava aquele amor platônico e contentava-se com a paz de vê-la diariamente.

Certa vez desconfiou daquela Azaléia relutante e reluzente que chamava atenção mais ao canto. Percebeu que ela tinha ciúme das outras flores. Até que lhe agradava um pouco, mas preferiu deixá-la ali, como a esperar pelo momento certo. Imaginava que a teria quando bem quisesse, e por isso resolveu aguardar um tempo para dar à Azaléia o destaque que merecia.

Nesse meio tempo, deixou-se levar pelos encantos das Acácias e se engraçou com virtuosas Camélias. Certa vez se aborreceu com a frieza e indiferença da Hortência, mas nada que se compare à sua desilusão com a Petúnia, que não floriu naquela Primavera.

Em um Inverno, os ventos trouxeram sementes de Violeta. Receoso, não sabia o que esperar, mas diante de tanta simpatia o Jardineiro acabou por ceder-lhe um espaço em seu jardim. A Violeta ficou admirada com tanta bondade e retribuía à altura: lealdade única, tornou-se o seu braço direito. Dava dicas de sobre como cuidar das outras flores, até o dia em que se apaixonou pelo Jardineiro. Passou a inventar dores e até mesmo novas cores, só para mantê-lo por perto; ele, tão ingênuo, não correspondeu. Quando já tarde, apenas viu, de longe, a Violeta chorar copiosamente no dia da sua despedida.

O Jardineiro se sentiu mal por fazer aquela flor sofrer. Lembrou-se então da Azaléia, a quem provavelmente também já causara algum sofrimento, e decidiu que deveria buscá-la para o centro do canteiro. Mais uma vez, era tarde. A Azaléia preferiu continuar no canto e rejeitou o que de melhor o Jardineiro tinha para lhe oferecer.

Foi uma nova queda. Ficou arrasado e, sem saber o que fazer, mais uma vez deixou seu jardim de lado por uns tempos. Exceto a Tulipa, a quem fazia questão de cultivá-la. Continuava lá, fervorosa, embora gostasse do frio. A Tulipa era resistente e durável. Já não tinha dúvidas que era uma flor especial. Mas não tinha coragem de dizer isso a ela, pois temia perdê-la assim como a Azaléia. Sustentava-a, apenas.

No último Verão, uma ventania trouxera uma semente de Girassol. Mesmo com olhos apenas para a Tulipa, o Jardineiro resolveu lhe dar uma chance. Porém o Girassol é espaçoso e exigente, carecia de muitos cuidados, além do que tomava muito do seu espaço. Sufocava o Jardineiro. Não demorou muito, tirou-lhe do jardim para, finalmente perceber que ali só havia espaço para a Tulipa.

A Tulipa era a sua motivação, o seu propósito de viver. Não reparava, mas ela, ainda que sem espinhos, fazia-lhe quase tão mal quanto aquela Rosa de uma década atrás. Só que agora o Jardineiro tinha a exata noção desse mal. Sorrateiramente, tentava trazer a Tulipa para o centro do canteiro. Se ali chegasse, garantia a si próprio, que jamais a permitiria sair novamente. Faria dela a flor mais feliz do mundo.

Dia desses, a Tulipa confessou-lhe que iria embora. Sentiu-se derrotado. Ficou revoltado. Disse que ia destruir o seu canteiro e que nunca mais há de mexer com flores. Concluiu que no final das contas, não sabia nada sobre elas. Ingratas, tomavam muito do seu tempo e pior, dedicação nenhuma era o suficiente. Não havia retorno, nunca era correspondido.

Estava desiludido. Percebeu que todo esforço havia sido em vão. Fez o possível para proteger seu jardim do mundo, mas viu que de nada adiantou: por mais que o quisesse isolar e fazê-lo um lugar diferente, esquecia-se das noites escuras e estranhas que colocavam tudo a perder. Na escuridão o jardim ficava desprotegido e desamparado. Simplesmente não podia protegê-lo das pestes mundanas. 

E assim a Tulipa foi a última flor do seu jardim. Agora tinha de se acostumar com a ideia de ver a Tulipa indo embora para se fixar em outros canteiros. Sabia que deveria mesmo deixá-la ir. Seu coração mais uma vez ficará partido, e o jardim, vazio.

Até que a vida lhe prove o contrário.

domingo, 11 de março de 2012

"Vim, vi e venci" - relato de um torcedor pela primeira vez em São Januário


Coisa de doido. Em resumo, esse foi o panorama do primeiro jogo que assisti em São Januário. Teve de tudo: erro da zaga, gol contra, expulsão, três pênaltis (sendo que dois foram perdidos e ainda outro não marcado), gols anulados, bola na trave, pressão e tensão. E, por fim, o alívio com o apito final do juiz e a primeira vitória na Libertadores.

Mas a emoção de assistir de perto pela primeira vez o jogo do seu time de coração não é contada na ficha técnica da partida, e por isso merece ser registrada nos seus detalhes.

Terça-feira, 6 de Março de 2012. Fazia minha primeira viagem a trabalho para o Rio de Janeiro. Por uma feliz coincidência, nessa data também haveria um jogo da Libertadores na cidade maravilhosa: Vasco x Alianza Lima.

Já se faziam 15 anos desde que eu havia escolhido o Vasco como time do coração, mas nunca tivera a oportunidade de ver o Gigante de perto. Ora, pois, a oportunidade estava ali: mesmo com o tempo de viagem apertado, o ingresso já estava comprado, e qualquer esforço seria válido para chegar a tempo no estádio.

Apesar dos contratempos impostos pelo azar que insiste em me perseguir desde sempre, cheguei, ainda que em cima da hora, em São Januário. Uma emoção indescritível. Nos arredores do nosso templo, já sentia o calor da torcida. O coração estava disparado. Sim, aquilo era real, e pela primeira vez estava prestes a ver o Vascão bem de perto.

Similar à felicidade de uma criança que espera por anos e finalmente ganha o mais desejado dos presentes, estava eu ali, de boca aberta, admirando tudo à minha volta. Vislumbrado, perplexo. Não era difícil notar o tamanho da minha felicidade. Estava em meio a tantos mil vascaínos, cantando e apoiando o time que buscava a nossa primeira vitória na competição.

Diferentemente de outros estádios, São Januário permite que os torcedores fiquem muito próximos ao campo. O que justifica o apelido do estádio de “caldeirão”. O time sente o calor da torcida, parte pra cima e conquista as vitórias. O caldeirão intimida os times visitantes e deixa o Vasco mais forte sob os seus domínios.

O jogo, repito, foi coisa de doido. Vi de tudo. Vi de perto um erro de zagueiro que teve o pior desfecho e por instantes calou a torcida. Minutos depois, vi o gol de empate e comemorei com a torcida o que pensei ter sido gol do Alecsandro, mas depois do jogo fui descobrir que fora contra. Vi o juiz anular um gol legítimo e deixar de marcar um pênalti ainda mais claro. Vi o Vasco levar para o intervalo um empate com sabor de derrota, com a torcida xingando a arbitragem e pedindo pelo “Maestro” Felipe.

Vi Alecsandro perder dois pênaltis em um jogo só. Vi, bem de perto, o “Mito” Dedé completar de cabeça para o gol da virada e fazer a torcida explodir. Vi Juninho Pernambucano chamar a responsabilidade para bater e converter o terceiro pênalti da partida, mesmo em uma noite não muito inspirada. Afinal, quem é rei nunca perde a majestade, e no mesmo jogo ainda vi o Reizinho meter uma bola na trave numa cobrança de falta quase perfeita.

Vi, de perto, o nervosismo e ansiedade da torcida esperando pelo apito final. Fim de jogo, 3x2. E foi assim que eu vi o Vasco conquistar os primeiros pontos no seu retorno a Libertadores. Vitória suada, sim, talvez mais do que deveria. Mas o que vale mesmo são os três pontos, e esses ninguém nos tiram mais.

Para marinheiro de primeira viagem, emoção não faltou. Após o jogo, bati no peito, com o punho direito fechado, à lá Júlio César, da Roma Antiga: “Vim, vi e venci”. Cantar e festejar com a torcida, comemorar a vitória, admirar o estádio. Coisas que não tem preço. A noite estava ganha. Sou pé-quente mesmo e voltei pra casa com os três pontos no bolso.

A noite daquele dia 6 jamais será esquecida. Ao deixar o estádio, mal sabia que muita coisa ainda me aguardava naquela madrugada. Mas isso já são outros quinhentos, nada seria capaz de estragar minha noite na cidade maravilhosa.

E o Rio de Janeiro? Ah, esse continua lindo...