domingo, 16 de setembro de 2012

Minha nada interessante vida – parte 2: Meninos não choram


Diz a lenda que os gatos tem sete vidas. Mesmo quando expostos a situações de risco extremo, eles conseguem escapar ilesos como se nada tivesse acontecido. Pois bem, pode ser que nós, meros mortais, não escapemos da morte assim tão facilmente, mas acredito que também tenhamos mais de uma vida. E o que separa uma vida de outra não é, necessariamente, uma situação de risco extremo, mas uma mudança que nos transforme profundamente.

Seguindo esse raciocínio, considero que já tive pelo menos 6 vidas. A primeira delas, evidentemente, começou quando minha mãe me apresentou ao mundo. A segunda delas, contarei aqui hoje. Teve início no primeiro dia de aula...

Teve uma infância solitária, quase sem contato com outras crianças. Por morar longe da zona urbana e pelo difícil acesso à escola, sequer era cogitada a possibilidade de cursar um “pré-escolar”: os adultos decidiram que entraria direto no ensino fundamental, a extinta primeira série. Quando completou 6 anos de idade começaram os rumores de que no começo do próximo deveria ir pra escola. A ansiedade já tomava conta e desde então ficava a imaginar como seria aquele universo novo que todos se empolgavam ao falar. Tão logo começou a ter as primeiras aulas de leitura com as tias professoras, (aulas) reforçadas em casa mais tarde pela mãe. Não demorou muito para que pegasse o jeito e começasse a ler tudo que via pela frente.

No começo do ano seguinte já estava mais do que preparado para ir à escola. Segundo as tias, tinha leitura e escrita avançada para uma criança daquela idade. Porém, com apenas 6 anos da idade, a escola poderia não permitir que fosse direto para a primeira série. Havia uma lei que não permitia que crianças de 6 anos, que apenas completariam 7 no segundo semestre, ingressassem diretamente no ensino fundamental. Então, por causa de 7 dias, tivera que aguardar por mais um ano para ir para a escola.

Enquanto os meses não passavam, foi aprimorando a leitura e a escrita. As brincadeiras mudavam. O “Show do César” já não tinha mais a mesma frequência, sendo substituído pela leitura de qualquer revista que achasse pela frente. Os irmãos, já maiores, podiam brincar e ajudavam na distração, mas ainda não era o suficiente: queria is pra tal da escola.

Finalmente, eis que chega 1996. A escola envia a lista de materiais, agora era pra valer. Foi às compras, escolheu o caderno, os pais compraram tudo o mais que fosse necessário. Tudo bem simples, mas nem sabia e tampouco se importaria. Exibia com orgulho os seus materiais. Com uma emoção que não cabia no peito, arrumou a mochila, vestiu o uniforme, acenou para os irmãos e entrou no carro. Já ia para o seu primeiro dia de aula, também o dia que começaria uma nova vida.

Quando avistou a escola, percebeu que teria de entrar sem os pais e ficaria sozinho junto de estranhos pela primeira vez na vida. Sentiu medo. Ficou inseguro e começou a ficar pálido. A mãe olhou para o branco de trás, com uma cara de piedade e deu um sorriso sem graça, como quem sentisse pena por ter de entregar o filho para a escola. Ainda com a cabeça a mil, ouviu a mãe olhar para o pai e perguntar: “será que ele vai chorar?”. Atento ao transito com intenso tráfego de crianças, respondeu sem pensar muito: “meninos não choram”. Gravou aquelas palavras e já sabia que não deveria chorar, mesmo sem saber o que poderia aborrecê-lo a tal ponto.

Despediu-se e entrou pelo portão. Foi conduzido até a sua sala, escolheu um lugar e sentou, aguardando a professora chegar. Olhou para o lado com certa timidez. Tantas crianças juntas era uma novidade intimidante. Algumas choravam, quem teria as maltratado? Estava assustado. Logo, a professora entrou pela sala. Chamava-se “Tia Edna”. Mas ora essa, “ela nem é minha tia...”. Aquietou-se. Limitou-se apenas a responder o seu nome quando a “tia” perguntou.

Mais tarde, ainda no primeiro dia de aula, uma brincadeira foi promovida: a professora colocava figuras de frutas no quadro-negro e os alunos tinham de dizer o seu nome. Levantava a mão quando conhecia a dita cuja, mas sempre havia um mais esperto. Até que, de tanto insistir, foi percebido pela professora. “Que fruta é essa, César?”. Encheu o peito e disse, baixinho: “é ‘murango’, tia”. “Fala mais alto que eu não ouvi!”. Com toda a simplicidade e inocência que cabem a uma criança, repetiu. “É MURANGO, TIA”.

Com um sorriso no rosto, olhou para o lado como quem quisesse uma aprovação dos colegas mais participativos e aparentemente tão sabidos. Não teve sucesso: já a garota do seu lado, logo a mais bonita, Letícia, soltou uma risada debochada: “ele nem sabe falar, é morango, e não ‘murango’!”. Sentiu-se desprezado. Pela primeira vez teve vontade de chorar, mas lembrou-se das palavras do pai e manteve-se firme. A professora sorriu-lhe e disse “tudo bem, você está de parabéns, é isso mesmo”.

Com a primeira folha quase cheia, ouviu o sinal tocar: a aula tinha acabado. Não entendeu o que era aquilo. A professora disse, “até amanhã”. Viu todo mundo sair correndo, levou um susto, juntou suas coisas e fez o mesmo. O primeiro dia de aula tinha acabado.

Do lado de fora, encontrou a mãe de braços abertos, emocionada ao reencontrar o filho após algumas horas. Tão logo se virou para o pai e disse: “viu, eu não chorei”. Sentiu-se aliviado por não tê-lo decepcionado, como se aquilo fosse muito importante. Ganhou um cafuné, entrou no carro e foi pra casa, ficando a esperar pelo dia seguinte, e pelo próximo e pelos seguintes. Uma nova vida estava começando.

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