terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Histórias de uma vida não vivida

Amanhecera chovendo. O dia começou cedo, como de costume. As mesmas atividades desagradáveis de sempre, acompanhadas pelas esperanças de que tudo aquilo tinha uma data para acabar e também pelo sentimento de culpa por pensar assim. Manhã aparentemente normal. Aparentemente. Invisível aos olhos, mas já fazia alguns dias que algo o perturbava. Consequências de uma mente confusa que passava por um processo de auto-descoberta. Não que fosse a primeira vez, mas agora a angústia era quase insuportável. Era como olhar no espelho e não enxergar nada. Ou enxergar exatamente o que não gostaria de ver. Passou os últimos anos inventando a vida que gostaria de ter, mas que não tinha. E a verdade é que jamais poderia. Aceitar a realidade, quando esta não agrada, não é nada fácil, principalmente para um adolescente. E por isso passou a viver em um mundo paralelo imaginário. Uma história escrita por ele mesmo, aos seus moldes e gostos. Recusava-se a sentir pena de si mesmo. Também não permitia que alguém conhecesse todo o seu desgosto.

Acreditava que uma mentira bem contada se tornava uma verdade, e que dessa forma poderia esperar em paz pelos dias que tanto sonhava, sem ter que conviver com o sentimento de "pena". Contava os casos do time de futebol que jamais existiu, dos belos gols que nunca marcou, da chuteira de artilheiro de um campeonato que nunca saiu do papel. Contava sobre as tardes de diversão com os amigos inexistentes, das brincadeiras e momentos inesquecíveis, mas que jamais saíram da imaginação. Contava sobre festas que jamais frequentou, lugares que nunca visitou, as viagens que nunca realizou. Contava sobre a namorada que nunca teve. Sob uma superfície tranquila, escondia sua realidade e os dias que nunca foram como gostaria que fossem. Contava as histórias de uma vida que jamais vivera. E contava com tamanha convicção que seria uma surpresa muito grande caso algum dia revelasse que tudo não passava de um faz de conta. Lembrava de cada detalhe, de modo que era capaz de sustentar uma história por anos a fio. Contava mentiras sinceras. Uma realidade inventada, sim, mas que não prejudicava ninguém. Descrevia a vida que sempre sonhara com as mais sinceras mentiras já contadas, com personagens que pareciam reais. Histórias interessantes que nem de longe lembravam a solidão e o contraste com a sua realidade. E a verdade é que por muito tempo foi suficiente viver nesse mundo paralelo, o tempo passava e ia contando os dias, esperando por aquele em que sua vida mudaria.

Aos poucos, foi perdendo a paciência. Achava que esse dia não ia mais chegar e se indignava porque estava perdendo boa parte de sua vida. Não sabia mais o que fazer, começou achar aquilo desesperador. Por muitas vezes acabou pagando o preço pela inocência e ingenuidade: acontecimentos marcariam sua alma como um ferro quente que marca o couro de um rebanho. Ia colecionando feridas de difícil cicatrização. Perdia a confiança nas pessoas e descobria que o mundo não era um lugar totalmente bom. Não compreendia mais nada e passava meses sem dar um sorrido sequer. Passou a não ser compreendido. E em meio a essa crise, cansou de tudo e aos poucos percebia que já não havia mais espaço para sua outra vida. Matou todos os personagens. Passava dias sem dar uma palavra. Deveras, tornou-se triste e solitário. Mas ainda se preocupava em não deixar transparecer as emoções, evitando assim magoar os que estavam a sua volta. Por vezes mostrava uma frieza falsa. Palavra que odiava, aliás. Incapaz de compartilhar qualquer coisa seja com quem fosse, fechou-se num casulo. E assim deixou de viver as histórias não vividas.

Os anos passaram, muitas coisas vieram a melhorar. Mas tantas outras talvez ainda estejam bem distantes daquilo que gostaria que fosse. Aos poucos, a luz voltava a clarear. Conseguiu confiar em algumas pessoas novamente. Viu que o mundo não era um lugar tão ruim assim. Voltou a sorrir, mesmo que fosse por um instante. Voltou a acreditar. Mas os personagens ficaram de vez no passado, afogados na adolescência.

Gosta do barulho da chuva. O som da natureza chorando é também o agradável som que conforta. É a chuva que renova as esperanças. Um dia, finalmente, quem sabe, poderá levar que vida que sempre quis. Em uma manhã como outra qualquer, chuvosa ou não, decidirá por um fim nesses tempos de escuridão. Estará de alma lavada.

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